quinta-feira, 30 de julho de 2015

Dramas da Obsessão - A Severidade da Lei - Capítulo VI

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes



Pouco antes do drama em que se envolveram vários brasileiros natos ilustres, desejosos da libertação do seu país da legislatura portuguesa, época fértil em acontecimentos trágicos e mui delicados, que ficaram olvidados pelos homens porque o Brasil de então não mereceria acato da Metrópole de além-mar para que o sofrimento do seu povo fosse devidamente consignado na História, — ou seja, pelas proximidades da época em que se verificou a conjuração denominada “Inconfidência Mineira”, na então Província das Minas Gerais — chegara de Portugal, com destino a esta localidade da grande Colônia, um alto funcionário da Coroa Portuguesa, dizendo- se licenciado para estudos e aventuras pelo interior de Minas, acompanhado da esposa, que, ávida de emoções e conhecimentos novos, se negara a continuar no seu velho casarão de Lisboa, sozinha e entristecida, enquanto o marido corresse terras e mares estranhos. Por essa época, não seria conselhável a uma dama bem nascida aventurar-se a viagens tão longas e arriscadas. 

Proibia-o o preconceito social, seria desdouro imperdoável, mesmo para uma esposa, abandonar-se a peripécias em terras desconhecidas, e a própria lei não concederia licença para tal fim, a não ser que motivos muito significativos justificassem o feito. Não o entendeu assim, porém, a esposa, muito jovem ainda, do funcionário licenciado, pois que, não conseguindo das autoridades permissão para acompanhar o próprio marido nas suas aventuras pelas intempéries da grande Colônia do Brasil, infiltrou-se sutilmente na marinhagem do veleiro que faria a travessia do Oceano e, já em alto mar, apresentou-se ao estupefato esposo disfarçada em vestes masculinas, protegida que fora por um oficial de bordo, amigo da família, aportando no Rio de Janeiro quatro meses depois sem maiores empecilhos, já que sua beleza e sua juventude, aliadas à esperteza de que usara, cativaram igualmente o comandante da nau transoceânica.

O oficial amigo, no entanto, cujo nome seria Fernando Guimarães, afirmando-se investido de certa missão secreta no Brasil, conferida por seus superiores, desligou-se da profissão e cedeu ao convite afetuoso do casal de esposos, para que viesse em sua companhia como se membro da família fora, uma vez que igualmente pretendia dirigir-se à importante Província, cujo Governador seria então o senhor Visconde de Barbacena.

A aventura sempre foi o traço primordial do caráter lusitano... e seguiram então os três amigos em busca da realidade de um Eldorado cuja fama seduzia os europeus.

Adquirira o casal, então, duas escravas negras para os serviços caseiros, e Fernando, agora integrado na família como irmão assaz querido, entendeu necessária também a posse de um escravo do sexo masculino, que se prestasse aos serviços externos, o trato de animais inclusive. Colocou, portanto, anúncios pelas tabernas e casas de negócios, nos dias de espera passados no Rio de Janeiro, servindo-se de pequenos cartazes dizendo da urgência na compra de um escravo resoluto e valente, para servir em viagens pelo interior da Colônia, que bem manejasse a foice e o facão de caça e que se encorajasse à caçada às feras através dos matagais, pois desejava Fernando, que já caçara na África, aproveitar ensejos para negociar com peles, a fim de disfarçar a missão trazida da Metrópole, dizia consigo próprio, esperando mesmo obter alguns exemplares das famosas onças brasileiras para transformá-las em luxuosos tapetes, que venderia no Reino a bons preços.

Bem cedo conseguiu o de que precisava. Chegara aos seus ouvidos que certo fazendeiro dos limites que hoje se transformaram no aprazível arrabalde da Tijuca, no Rio de Janeiro, entregara às autoridades um escravo rebelde, a fim de que fosse julgado e quiçá condenado a morte, O infeliz negro via-se acusado, de todos os lados, pelo crime de homicídio nas pessoas de nada menos de três capatazes da dita Fazenda e de um negrinho de quinze anos de idade, também escravo, que aparecera afogado nas águas de um riacho próximo. 

Não obstante, o réu negava veementemente a autoria dos crimes, e, porque não existissem testemunhas, as autoridades, indecisas, apelaram para o “juízo da Igreja”, ou o “juízo de Deus”, nas pessoas do Clero oficial da capital da Colônia, e estas, muito prudente e justiceiramente, deliberaram mantê-lo preso até ver se se resolveria a confessar o delito, ou se porventura alguém, por ele se responsabilizando, o levaria sob um processo de compra legal, visto seu antigo Senhor não querer mais admiti-lo em seus domínios e as autoridades se quedarem indecisas em condená-lo sem provas suficientes, e também em deixá-lo em liberdade diante de tão sérias acusações.

Apresentou-se, então, Fernando Guimarães no local indicado, a examinar a “mercadoria” à venda e as condições da compra. Homem de caráter aventureiro, habituado à intrepidez do comando de marinheiros e a brigas marítimas com piratas, constatou que lhe convinha a aquisição, e, sentimental a despeito de tudo, como todo verdadeiro português, sentiu-se compadecido ao verificar o escravo algemado de pés e mãos e que, por seu corpo, pronunciadas cicatrizes, produzidas por chicotes, assinalavam os maus tratos recebidos de seus senhores.

— Como te chamas, amigo .... — interrogou ele, com bonomia, à “mercadoria” já adquirida, cujo preço fora irrisório, dadas as desvantagens que a mesma oferecia ao comprador.

— É... é... Caetano do Espírito Santo, Nhonhô, para seu serviço...

A humildade entrevista nesta frase simples, proferida com um misto de timidez e espanto por se ver bondosamente tratado, talvez pela primeira vez, comoveu ainda mais o rude marinheiro, que continuou no seu original inquérito:

—Queres vir comigo, servir-me lealmente, comer bem, não receber castigos, seguir-me em minhas viagens e caçadas?...
O infeliz caiu de joelhos, procurando beijar as mãos daquele que aparecera em sua vida como benfeitor que o salvava da morte, e respondeu:

—Nhonhô, serei fiel escravo... Livrai-me da morte... Tenho medo da forca... Tenho medo... (31) Pelo caminho, demandando a hospedaria que ocupava com os amigos, Fernando interrogou Caetano, em tom afável:

—Porque mataste os três capatazes?... Dize-me a verdade... Sou teu amigo...

Não te entregarei à Polícia... Mas preciso conhecer-te bem, ainda que sejas criminoso, para poder confiar em ti.

A resposta foi veemente e fácil:

—Nhonhô, matei só um capataz... Os outros dois não fui eu... Foram “Pai Nastácio” e o “Totonho da Porteira”.

— Porque o mataste?...

—Era cruel... Deixava-me com fome por qualquer motivo... Eu vivia faminto e era forçado a trabalhar... Espancava-me sem razão... Estes sinais, Nhonhô, foram feitos pelo chicote dele... Bateu em minha mãe à minha vista... e por isso... 

—Porque não disseste às autoridades que “Pai Nastácio” e o “Totonho da Porteira” mataram os outros dois?...

—Eh! Eh! Eh! Nhonhô... Mas um escravo não deve entregar outro escravo para ser enforcado... Eles também sabiam que eu matara o outro e se calaram...Nós também possuímos nossa honra e nossa lei... Eles também sofriam, eram chicoteados...

—E o menino?...

— Não era um “menino”, Nhonhô, era um escravo, um “moleque”.

— Sim, e esse?

— Ninguém o matou... Caiu no riacho, que estava cheio, e afogou-se... Era muito traquinas...

— Disseram que tu o mataste, atirando-o ao rio para que se afogasse, porque não gostavas dele.

— Não, Senhor, não gostava dele... Mas não o matei... Bati-lhe algumas vezes...

Era mau e intrigante... Para receber comidas e doces intrigava os escravos com os capatazes...

— Então não o mataste?...

— Não, Senhor! Ninguém o matou.

— Caetano, confio em ti... — concluiu o lusitano. — Serei teu amigo. Se me servires fielmente, conforme desejo, durante os quatro ou cinco anos que pretendo demorar-me no Brasil, ao regressar a Portugal não te venderei a outro Senhor...

Dar-te-ei antes carta de alforria...

O negro beijou a mão a seu Senhor, sem nada responder.

(31) Perdoará o leitor a não tradução do linguajar enfadonho dos antigos escravos africanos.

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