quarta-feira, 24 de junho de 2015

Dramas da Obsessão - Primeira Parte - Capítulo VIII

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes

Entrementes, também urgia afastar os obsessores responsáveis pelos acontecimentos que descrevemos. Tratava-se de pequena falange de poderosos inimigos invisíveis: — um pai e seus três filhos varões, uma família, portanto, perseguidora de outra família. Israelitas típicos dos meados do século XVI, em Portugal, era impressionante vê-los trajando ainda a indumentária clássica da sua qualidade racial e social da época, pois que, atados às tumultuosas recordações e às impressões dolorosas do pretérito, com tal veemência se haviam apegado ao mesmo, que seus períspiritos, pressionados pelas poderosas forças realizadoras do pensamento, se apresentavam exatamente idênticos aos seus envoltórios humanos de quatro séculos antes. Fossem alcançados pela vidência de um médium assaz desenvolvido e seriam notificados quais homens fantasiados para um baile de máscaras, indo e vindo, rancorosos e sofredores, pelo ambiente doméstico de Leonel, tal se fizessem parte da família. Não obstante, o imaginário médium teria simultaneamente observado certo detalhe singular nas configurações perispirituais das mesmas entidades: — vestígios sanguinolentos em seus corpos físico espirituais, tais como dedos das mãos e dos pés com unhas arrancadas, gotejando sangue; carnes queimadas, quais desenhos de feridas recentes produzidas por ferros incandescentes; pulsos deslocados, impossibilitando destreza de movimentos; mordeduras de ratos gigantes, tão comuns nos calabouços de outrora; estigmas, ao longo das faces, pelo pescoço, braços e pernas, do azorrague despedaçador, enfim, todo o emblema trágico da ignomínia usada nos tratos às vítimas da Inquisição verificada em Portugal, por aquela época.

Odientos e sombrios, deixavam entrever também o panorama impressionante da longa permanência na incompreensão, do desamor ao próximo, enquanto extrema fadiga, sofrimentos morais inimagináveis se estereotipavam em seus semblantes espirituais, indicando a urgência que traziam de igualmente serem socorridos pela misericórdia dAquele que não deseja a perdição do pecador, mas que ele viva e se renove para o Bem.

Roberto fora hebreu em certa existência vivida em Portugal e na Espanha e fácil lhe seria valer-se da circunstância para atingir os nobres fins que trazia em mira. Fez, portanto, que retroagissem ao passado as próprias forças mentais (fenômeno de regressão da memória, tão conhecido nos dias atuais, passível de realização tanto entre encarnados como entre desencarnados), pela ação de uma irradiação da própria vontade... e voltou a ser o judeu de outrora, o homem oprimido e sofredor em Portugal, ao tempo da Inquisição, ameaçado a cada passo por um sequestro e quiçá pela morte, sob os tratos do Santo Oficio (3).

Assim transfigurado, deixou-se materializar conforme requeriam as circunstâncias, e penetrou serenamente na residência sinistrada, a qual se afigurava às suas sensibilidades delicadas o próprio local onde existiriam o choro e o ranger de dentes lembrados na exposição messiânica.

— Que Moisés e os Profetas te guardem dos teus inimigos e dos inimigos da nossa raça, Rabino... (4) — saudou Roberto, intimorato, servindo-se de uma vibração mental especial, que àquele se afigurou o dialeto aramaico usado desde milênios pelos da sua raça.

Grave, não demonstrando sequer surpresa, como se a saudação e o dialeto em que fora ela proferida fossem garantidas credenciais recomendando o visitante, o obsessor correspondeu naturalmente o cumprimento comum entre os seus:

— Que Moisés e os Profetas te guardem, e à nossa raça, da crueldade dos nossos inimigos...

Fitaram-se, como se mutuamente se procurassem reconhecer. Roberto aguardou a interrogação, demonstrando, com essa atitude respeitosa, subida consideração à pessoa e à qualidade daquele em quem reconhecia um Rabino.

Este prosseguiu, ao fim de alguns segundos:

— De onde és?... Como te chamas?... Ao que vens?

— Venho da Andaluzia... Chamo-me Miguel... Trago-te uma mensagem de paz e de amor, a par da minha visita pessoal, com um convite...

Aquele pareceu não ouvir o fraseado incomum para seus ouvidos habituados aos insultos das blasfêmias, e continuou, em divergente diapasão:

És porventura um perseguido, um infeliz de quem fizeram um pária, como a nós outros, os de cá?...

— Não, Rabino, não me perseguem... Isso passou, com o tempo... Coloquei-me sob a égide de um grande e poderoso “Rabboni”... (5) o qual sabe defender de todos os males quantos se acolhem à sua sombra... E venho convidar-te, em nome de tua sobrinha Ester, a visitá-la e a te entenderes com ela, pois sei que sofres desde muito, que tu e os teus fostes torturados sob mil injúrias e tratos cruéis, e que, portanto, necessitas de grande repouso e consolações...

—Assim tem sido, meu jovem andaluz... Porém, como me conheces?...

— Conheço-te, e aos teus, através dos relatos da tua Ester... Ela mandou-me a ti...

A esse nome, duas vezes proferido durante alguns instantes, o velho Rabino impressionou-se, sentindo que das profundezas da sua alma estremecimentos singulares se levantavam, dulcificando-lhe o ser. Um jovem hebreu, acompanhado de mais dois outros, ambos adolescentes, aproximou-se, vivamente interessado. Tomando a palavra, perquiriu, arrogante, revelando índole belicosa:

— E onde se encontra Ester?... É a minha prometida... Desapareceu para sempre! Os miseráveis raptaram-na, esconderam-na, após torturá-la e vilipendiá-la em nossa presença...

As interrogações se acumularam, aflitas, magoadas, atestando inquietações dolorosas. Meu jovem assistente, no entanto, retorquiu, sereno e convincente:

—De fonte autorizada eu vos informo que se acha bem próximo o momento em que haveis de revê-la para nunca mais vos apartardes dela! Todavia, depende de vós a obtenção de tão grandiosa felicidade... Rogo-te, Rabino, atenderes ao chamamento de Ester, indo visitá-la onde te espera... e ao meu convite, para travares conhecimento com o “Rabboni” que me protege e que igualmente a ti estará pronto a amparar...

O velho israelita, com um ricto de enfado e com um estremecimento singular, qual vibração odiosa inédita para o meu delicado assistente, que jamais odiara alguém, redarguiu:

— Para dizer-te a verdade, jovem patrício, fui perseguido, sim, porém, hoje já não o sou... No momento revido as ofensas outrora suportadas... e tu sabes, pois que és um dos nossos, que, por muito que eu me dedique a requintar a vingança, não chegarei a “ofendê-los” ou “fazê-los” sofrer tanto quanto “eles” a nós outros o têm feito... És judeu, meu jovem andaluz, e não ignoras o que, em Portugal e na Espanha, o “Santo Ofício” há realizado contra nós...

— Quer dizer, então, Rabino, que esses de quem hoje te vingas, isto é, Leonel e família, pertenceram ao “Santo Ofício”, ou à Inquisição, em Portugal... e que o drama que neste cenário entrevejo tem origem nesse remoto tempo? ...

A entidade obsessora voltou-se, agitada por significativa surpresa:

— Remoto? .... Tu dizes um tempo remoto? .... Não! Foi ontem mesmo! ... pois ainda não estamos com o reinado de El-Rei Dom João 3º? ... ainda estou ferido, e também os meus filhos, vês? ... ardem-me horrivelmente as queimaduras, e magoam-me... sangram-me os dedos, de onde me arrancaram as unhas... sofro muito... e também os meus pobres e queridos filhos, que eram jovens honestos e gentis, que nenhuma ofensa dirigiram àquela malta... mas os quais agora vejo reduzidos a este estado... foi ontem mesmo, foi! Oh!... Mas sim... às vezes parece-me que esse tempo está muito distante... que tudo aquilo aconteceu há séculos..., mas tal impressão de longevidade se dá porque tenho estado encarcerado muitas vezes... e nas sombras de uma masmorra o tempo se afigura mais longo, não é verdade? ... E sinto-me cansado, muito fatigado... No momento, pois, vingo-me dos meus algozes de outrora, ou de ontem, nem sei ao certo... desses, que aí estão... São esses miseráveis e depravados, que vês por aí... a chorarem hipocritamente, clamando por Deus, a quem nunca honraram e em quem não creem... como se fossem dignos de pronunciar tal nome... O que quero é despedaçá-los... Vês aquele, acolá? ... O moreno, de olhos grandes e melancólicos, como os de todo hipócrita quando planeja o mal? ... Ainda é o mesmo de outros tempos... Foi quem lembrou de nos dilacerar as carnes, abrindo-nos estas feridas... Conheci-o sob o nome de Fausto de Mirandela... Parece que agora usa outro nome, para melhor se poder ocultar, como faz todo covarde da sua espécie... Pretendo trucidá-lo qualquer dia desses... Quero vê-lo despedaçado, sentindo por todo o corpo as ardências torturantes que eu e meus filhos sentimos, quando nos arrancaram pedaços de nós mesmos com as tenazes em brasa, usadas pelos carrascos da Casa da Inquisição... (6) Há dias atirámo-lo diante de um monstro de ferro e fogo, cujo roncar nos apavora, monstro que deita fogo, fumo e estrídulos dolorosos, alarmantes... (7) Se o apanhasse, esse monstro o despedaçaria em suas garras, pois que as possui inúmeras, grandes, terríveis, destruidoras... Porém, salvaram-no. Sei que já não sou, propriamente, um homem, mas apenas um simulacro de homem, a despeito de me sentir tão vivo e tão humano como dantes, assim como os meus filhos... e sei que eles, os meus algozes, o são, disfarçados, embora, em outras armaduras... Eles sempre se disfarçaram assim... Noutros tempos vestiam-se de amplas túnicas negras, com capuz e máscara, para não serem reconhecidos pelas vítimas... e também temendo represálias... (8) Não importa, são os mesmos de ainda ontem, e, por isso, vingo-me, pois este litígio desencadeou-se desde nossa arbitrária prisão, em Lisboa... A lei me dá direito do ricochete... Dize a minha Ester que venha cá, antes, ver-nos... Sentimos inconsoláveis saudades dela, mortificantes preocupações a seu respeito nos desorientam... Procurámo-la por toda a parte onde nos pareceu possível encontrá-la... Porque nos abandonou assim? Ou têm-na presa? ... Sim, os miseráveis desonraram-na e encarceraram-na... que venha ver-nos... Dize-lhe que está vingada: — Frei Hildebrando foi por nós trucidado... foi ele o seu maior algoz, sabes? ... se és andaluz, deves conhecê-lo... quem o não conhece em Espanha? Trata-se de história dolorosa... não poderei abandonar este posto para ir vê-la... vigio-os, aos miseráveis inquisidores... acho-me em vésperas de colher mais dois em minhas redes, para atirá-los ao báratro dos réprobos... tu conheces o báratro dos réprobos? ... mergulho-me nele por algumas vezes, a buscar inspiração para o meu ódio e as minhas vinganças... é horrível! Hei visto por aí todos os baixos níveis da sordidez humana, dos sofrimentos e depressões, mas nada se me afigurou mais sórdido do que a abjeção do suicida! E nem ta poderei explicar, porque me faltariam palavras! Os esgares que ele apresenta nas convulsões traumáticas, suas revoltas, suas blasfêmias de demônio enlouquecido, sua pavorosa confusão, eternamente envolvido em ânsias e sombras de pesadelo, suas diabólicas alucinações e seus furores e raivas são inconcebíveis por um raciocínio normal...e todo o monstruoso cortejo dos seus males agrada-me para aplicar em meus algozes, os algozes de meus filhos e de minha Ester.... Torná-los, a todos, suicidas! Eis o meu anelo supremo! Oh, que alegria para o meu coração, que se rebelou para sempre! Já atirei dois deles:

— Frei Hildebrando e o miserável João-José, que agora andou disfarçado em mulher...

Assim fazem os traidores covardes — disfarçam-se em sexo diferente, pretendendo não serem jamais reconhecidos... Puro engano! Nada há que os encubra às nossas vistas! E a João-José reconhecemos, particularmente, pelo coxear da perna esquerda, que agora não pôde ocultar... a um dei a arma com que despedaçou a cabeça: — Frei Hildebrando! Ah! Ah! confesso-te, amigo andaluz, que ajudei a acionar a molazinha mágica... Mas ao outro, ao traidor João-José, a quem aqui chamam “Alcina” — ah! ah! ah! “Alcina”!... a esse ofereci um tóxico violento: — veneno! Veneno! Morte que se dá aos traidores... como se fazia nos tempos de Sua Santidade, Alexandre 6º... (9) Mas Hildebrando, agora, percebe-me, só agora! e se horroriza... Esconde-se debaixo das camas, tal como eu e meus filhos, quando os beleguins do “Santo Ofício” nos invadiram a casa... Mete-se a dentro dos armários, das arcas, por trás das portas, sem coragem para enfrentar-nos, como outrora... É um covarde, afianço-te! Vou levá-lo, eu mesmo, ao báratro, onde estão os seus iguais... Estou decepcionado... e não compreendo... Porque não foram os dois para o báratro, até agora?... Frei Hildebrando está uma sombra do que foi, o cruel inquisidor! Mas não era só isso que eu desejara para ele... E João-José desmaiou e se encontra em agonia desde que sorveu o tóxico de Alexandre 6º, que lhe ofereci, isto é, aquela água tofana, a que estou ouvindo chamarem aqui

Arsênico... Estou desesperado! Porque não foram para o báratro ?... Hei-de arrastálos até lá... Se me ausentar daqui, algo desagradável sucederá... Meus filhos são inexperientes, sem mim não saberiam agir... Dize a minha Ester que venha cá...

Calou-se, exausto, como sucumbido por ansiedade depressora... Roberto, que ouvia em muito prudente silêncio, chamou a si a serenidade possível no caso, para responder com inteligência:

— Creio muito justas as tuas ponderações, Rabino, e concordo contigo: — a lei de Moisés prescreve, com efeito, a retribuição das ofensas contra nós praticadas pelos nossos inimigos... Muito a teu pesar, porém, declaro-te que Ester não deseja medir-se com estes réprobos... Esqueceu-os completamente, porque é feliz! Não está prisioneira, nada sofre... Todavia, não virá... Se queres vê-la e falar-lhe, terás de buscá-la onde se encontra... E aproveitarás a oportunidade para te entenderes com o “Rabboni” de que venho falando, do qual é ela discípula...

— Tu mais e mais me aguças as preocupações e a curiosidade... Mas estou indeciso... Esse teu “Rabboni” me reprochará pelos feitos que venho realizando em torno dos meus algozes?... Muitos outros o têm feito. mandando-me perdoar-lhes, pois dizem que, com efeito, a lei e os profetas ensinam o amor aos semelhantes... Mas, que têm eles com os meus assuntos particulares?... Aos semelhantes, sim, concordo! Mas, e aos inimigos?... Um inimigo será um semelhante nosso?... Como poderei amar Frei Hildebrando, João-José, Fausto e Cosme de Mirandela, a Condessa Maria de Faro?... Quem é, afinal, ele, esse Rabboni teu amigo ?...

Sem desejar valer-se de uma inverdade, mesmo quando ela poderia passar como beneficente, mas também não podendo expor a verdade em toda a sua clareza, revelando a pessoa de Jesus-Cristo, que era a quem se referia, respondeu com segurança o meu assistente:

— É um dos nossos! Como tu, como eu, como teus filhos, foi igualmente perseguido, vilipendiado, supliciado pela casta sacerdotal... Não, ele não te deteria nas ações que preferires praticar, pois concede-nos liberdade de ação... deseja, sim, que renunciemos ao mal por amor à virtude, mas quer que o façamos por nossa livre e espontânea vontade, sem quaisquer coações... Vem, sem temor... E a fim de que nenhuma anormalidade advenha, contrariando-te, deixaremos aqui alguns amigos — uns milicianos árabes — de ronda a esta casa... São também teus amigos... desejam ser úteis a ti e aos teus filhos.

O chefe dos ofensores aquiesceu, talvez premido por uma vontade superior interessada em conceder-lhe ensejos para a emenda de princípios, e certamente vencido pelo desejo de rever Ester, sua sobrinha, igualmente supliciada e morta pelo tribunal da Inquisição, a qual, no entanto, jamais pudera reencontrar, desde quatro séculos, uma vez que ela soubera, desde muito, acolher-se sob a inspiração do Bem e do Amor, perdoando àqueles que a haviam torturado no passado, e, portanto, afinando-se com a Luz.

(3) Os Espíritos evoluídos poderão retroceder no tempo, aplicando-se o fenômeno de regressão da memória, sem perderem a consciência do estado presente.

(4) Doutor da lei judaica. Sacerdote judaico.

(5) Titulo honorífico entre os judeus, que significa Mestre. Jesus era chamado “Rabboni” — (Mestre) — pelos seus discípulos e admiradores.

(6) Edifício-sede do terrível tribunal, em Lisboa, onde as maiores crueldades eram praticadas nas pessoas dos condenados pelo mesmo tribunal.

(7) Trem de ferro. Um individuo que desencarnasse no século 16 e cujo Espírito se mantivesse em atraso, imerso nas obscuridades da própria treva mental, poderia, com efeito, desconhecê-lo, descrevendo-o, no século 20, segundo as possibilidades da cultura do século em que vivera. No Apocalipse, São João, em Espírito, vendo o panorama da atualidade, que 2.000 anos separavam da época em que se dava a visão, descreve os atuais aviões como — grandes gafanhotos de ferro com caras de homem, fazendo um barulho ensurdecedor... - Será, pois, a mesma situação...

(8) Os inquisidores vestiam-se, com efeito, ao presidirem os tormentos dos condenados, com longos hábitos negros e usavam um capuz em feitio de cone, que enfiavam pela cabeça até ao pescoço, os quais tinham orifícios para os olhos, nariz e boca, transformando-se, assim, em máscaras impressionantes. O aspecto que apresentavam era, então, sinistro. Muitos Espíritos endurecidos, de preferência os obsessores muito odiosos, tomam esse aspecto, o que os torna verdadeiramente hediondos.

(9) Rodrigo Bórgia, pai de César e de Francisco Bórgia e da célebre Lucrécia, Papa sob o nome de Alexandre 6º.

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