terça-feira, 30 de junho de 2015

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo XII

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes


Três dias depois da denúncia, era sábado, o dia consagrado pelos hebreus aos deveres religiosos. Realizar-se-ia a reunião dos adeptos de Moisés e dos Profetas no local conhecido, e o doutor Timóteo não poderia faltar porque era o intérprete, o que melhor conhecia as intrincadas leis do judaísmo, para instruir o povo.

Desusada movimentação verificava-se na chamada Casa da Inquisição, isto é, na sede da Instituição, pois que o inquisidor-mor, o vice inquisidor, seus adjuntos, a milícia do “Santo Ofício” e até soldados do Rei encontravam-se a postos para a batida daquela noite numa Sinagoga clandestina que acabara de ser denunciada, a fim de se lavrar o flagrante dos falsos cristãos, como eram denominados os infelizes hebreus forçados a uma conversão que lhes repugnava. 

João-José entrava e saía, febricitante, do sinistro edifício, delator por ambição ao ouro, malévolo, possuído de odiosas alegrias ao prelibar o gozo ignóbil de embolsar respeitável quantia após a conclusão do serviço. Até que a noite caiu e começaram a se reunir na dita Sinagoga os judeus cujos corações revoltados procuravam lenitivo na evocação da antiga crença que lhes embalara a infância. 

O doutor Timóteo lá estava, à cátedra, investido do seu ministério de intérprete da Lei... quando pancadas soaram nos portões, repetidas e aterrorizantes, seguidas de arrombamentos de portas com alavancas, barras de ferro, etc., e a invasão dos soldados do Rei e do Santo Ofício. Alguns daqueles infelizes, espavoridos, tentaram a fuga. Mas a casa, inteiramente cercada, era invadida de todos os lados, sem alaridos, sem rumores inúteis, porque a Inquisição era discreta, sabia agir em silêncio, dentro das sombras da noite e a dentro dos muros das suas prisões, sem repercussões perturbadoras da ordem. O pelotão, porém, era comandado, ou orientado, por três dominicanos encapuzados e mascarados, a fim de não serem reconhecidos. Mas, em vendo-os, Aboab, majestoso, altivo, e provando, na hora derradeira, o orgulho da sua raça, reconheceu-os imediatamente e exclamou:

— Oh, sim! Prendei-me, senhor Dom Frei Hildebrando de Azambuja! Agradeço a honra que me concedeis vindo pessoalmente aprisionar o vosso anfitrião e amigo, em cuja mesa vos regalastes de bebidas e comezainas como os porcos o fazem em suas pocilgas! ... Para um inquisidor-mor, a atitude é tão comezinha quanto o é o próprio caráter da instituição e dos seus funcionários! Possuís criados e soldados... Deveríeis antes vos terdes conservado em vosso posto de comando do que no de lacaio de um Rei infame!

Virou-se para os companheiros de ideal religioso e prosseguiu:

— Apresento-vos o inquisidor-mor de Portugal, Dom Frei Hildebrando de Azambuja! A ele ficaremos devendo as desgraças que sobrevierem sobre nós e nossa descendência... Chegai Fausto, Cosme de Mirandela! Chegai sacrílegos e obscenos irmãos, incestuosos e hipócritas, que aviltais a própria crença, ao afirmardes que a professais! Prendei-nos, blasfemos, que desonrais o próprio nome do “Santo dos Santos” (23), ao proferi-lo! 

Ó réprobos dos infernos! Eu vos amaldiçoo do alto desta cátedra sagrada, da cátedra do povo de Israel, que difundiu entre os homens a crença e a confiança no verdadeiro Deus Todo Poderoso, investida de uma autoridade que os milênios não apagam! Amaldiçoo-vos! E, se a alma de um homem se perpetua, realmente, depois da sua morte, tereis a minha e a dos meus filhos — meu sangue e minha carne, que ides sorver e devorar — acompanhando-vos quais sombras vingadoras, que vos perseguirão pela consumação dos evos...

As mulheres presentes prorromperam em prantos e lamentos compungentes, certas do que as aguardava na Casa da Inquisição, enquanto Aboab terminava a maldição:

— “Sei que a fogueira aguarda a mim e aos meus filhos... Mas ouvi, malditos, antes que a tortura dos vossos subterrâneos emudeça a minha língua: — jamais admiti a vossa crença! Odeio-a como odeio a vós outros! Por amor dos meus filhos, apenas, fiz que a aceitei, quando a vossa tirania ma impôs! Porém, desprezo-a como a vós desprezo, porque uma crença que induz os seus adeptos aos crimes e vilezas que praticais não é uma religião, mas a mais absurda e execrável das heresias, cuja cruel atuação será a vergonha da posteridade, que vos há de julgar e condenar como hoje julgais e condenais homens indefesos, vossos compatriotas, que nasceram sobre o mesmo solo e vivem sob a mesma bandeira!”

Disse-o e cuspinhou no chão em direção a eles, com nojo e escárnio, ato que, entre os da sua raça, era a suprema afronta, o mais vil insulto. Não mais logrou, no entanto, sequer o tempo necessário para ultimar o ultraje, porque soldados caíram sobre ele, a um sinal do inquisidor mascarado, que não se dignara pronunciar uma única palavra; manietaram-no, espancaram-no, retiraram-no do interior da casa amarrado a cordas, e, arrastando-o pelas ruas, de encontro às lajes incertas, como se o fizessem a um trapo desprezível, blasfemavam insultos, enquanto os gêmeos de Mirandela, correndo ao encalço dos verdugos que o arrastavam — sinistra comitiva de uma abominação que o homem hodierno não chegará a bem compreender —, vociferavam, excitados, coléricos:

— Poupai-o! Poupai-o! Queremo-lo vivo e bem vivo! Precisamos que ele viva! Bem vivo!...

Todos os demais, surpreendidos em flagrante de. Judaísmo quando já haviam recebido o batismo da Igreja e eram considerados, por esta, cristãos, foram encarcerados nos subterrâneos da Casa da Inquisição. Arrastado pelas lajes qual um trapo inútil, semimorto, ferido, banhado em sangue, o doutor Timóteo viu-se atirado a uma espécie de poço húmido, manietado como se encontrava. O desgraçado sabia que ia morrer, mas não o ouviam lamentar a própria sorte, senão repetir estas pungentes e altivas palavras:

— Matai-me, despedaçai-me, pois sou judeu, com efeito! Mas tende piedade dos meus filhos, que são inocentes e nem conhecem a existência dessa cátedra! Eles são cristãos, nascidos em Portugal, educados por mestres dominicanos! Jamais desobedeceram às leis! Piedade, piedade para meus filhos!...

Abandonaram-no na masmorra soturna, povoada de insetos imundos e ratos vorazes, que logo entraram a atacá-lo por entre mil torturas indescritíveis...

Entrementes, Hildebrando e seus acólitos se reuniram em sessão secreta, radiantes com as prisões efetuadas, a fim de discutirem quanto ao destino a darem ao resto da família Aboab.

— Prendamo-los a todos — incitavam Fausto e Cosme, cujas opiniões eram idênticas em quaisquer circunstâncias. — São da mesma raça... convém exterminá-los de vez, a bem do decoro da nossa legislação religiosa...

— Legalmente não o poderemos fazer, visto que não existem suficientes razões... Ao demais, são duas horas da madrugada... — aparteou alguém da diabólica assembleia, ainda não de todo corrompido.

— A Santa Inquisição age como bem lhe aprouver, pois que é autônoma... e, acima de tudo, houve denúncia de que toda a família vem “judaizando” desde muito, o que é proibido por lei... e esta nos dá o direito de uma devassa em regra no domicílio suspeito... — acudiu Frei Hildebrando, afetando zelos pela instituição, mas a rigor premeditando algo deplorável em torno da infeliz Ester.

— De outro modo, uma vez Silvério aprisionado, assistir-nos-á o direito de confiscar-lhe os bens... - acudiram os gêmeos, ambicionando o que ainda restava da mansão cobiçada.

— Sim! — voltou Azambuja — confiscar-lhe-emos os bens! Aquele miserável judeu é riquíssimo, embora tente convencer que se encontra arruinado... São duas horas da madrugada... Convém devassarmos o domicílio agora, a fim de evitarmos alaridos e escândalos com a luz do Sol... Investigaremos esconderijos onde possam existir comprovantes de heresias e de riquezas... a fim de que algo aproveitemos a tempo... visto ser de lei que seja o Estado que lucre com a confiscação... Quanto àquela jovem... à menina Mariana... Bem... Resolveremos depois o seu destino... Foi educada por irmãs dominicanas... Incumbo-me dela...

Tais vilezas eram comuns. Ninguém aparteou... e o grupo sinistro rumou para o solar judaico, em cujo interior era tudo silêncio e quietação.

Não obstante, velavam ainda os seus habitantes, porquanto, inquietos com a prolongada ausência do seu querido chefe, Ester e os primos pressentiam algo temeroso delineando-se sobre suas cabeças. Subitamente, perceberam vozerio e bulha incomum no pátio da entrada principal. Acorreram, curiosos, às rótulas das janelas e recuaram apavorados: — à luz vermelha e crepitante de tochas sustentadas por pagens batedores, cinco soldados armados e cinco clérigos mascarados com grandes capuzes entravam pela porta principal da residência — como conviria a autoridades — guiados por João-José, que lhes abrira os portões e agora descerrava serenamente a porta do edifício, secundado pela mulher. Espavoridos, os dois jovens, Saulo e Rubem, procuravam ocultar-se pelo interior dos armários, sob as camas e os aparadores, enquanto Ester tentava serená-los e detê-los, exclamando com heroísmo e ânimo varonil:

—Mantenhamos ao menos a dignidade de enfrentarmos o martírio com serenidade para morrermos com heroísmo, sem jamais patentearmos pusilanimidades diante dos algozes! — Ao passo que Saulo gaguejava, trêmulo de terror e de revolta, ante a arbitrariedade que os violentava:

—Não! Não poderão prender-nos a uma hora destas, sem que cometêssemos delitos que justificassem tal violência! Não podem! Não cometerão tal iniquidade! Temos o direito de defesa e justificativas, que a lei nos concede! Tratar-se-á, porventura, de ódio particular, de perseguição oculta, à revelia da lei? Meu pai, ó meu Senhor e pai! Socorrei-nos! Socorrei-nos! Misericórdia, ó Deus Eterno, pois somos daqueles vossos legítimos filhos, da raça dos vossos santos Profetas! ... É a Inquisição que nos vem prender, ó Deus! É a tortura, é a fogueira! O fogo! O fogo! Irão queimar-nos vivos, como fazem aos demais! ... Ó meu pobre irmãozinho querido, Rubem! Foge, Rubem! Foge para qualquer parte, que já estaremos desgraçados! Socorro! Socorro! É a Inquisição que chega! Os frades! Os inquisidores! Deus do Céu, não os dominicanos! ...

Abraçaram-se os dois irmãos, excitados, aterrorizados ante o que viam, derramando copiosas lágrimas, prostrados de joelhos sem bem compreenderem o que faziam, enquanto Ester, junto deles, envolvia-os num só abraço, como desejando protegê-los contra o perigo iminente, pois já os perseguidores entravam violentamente no recinto pela porta aberta, com estrondo, pelo servo infiel. À vista de Ester, tão bela, tão altiva e indefesa entre os primos, moralmente ainda mais frágeis do que ela, os algozes tiveram um instante de indecisão, como se algo em suas consciências se envergonhasse da soez atitude que tomavam, devassando indebitamente um lar respeitável onde poucos dias antes ainda eram recebidos como amigos.

A jovem, porém, reanimada, ergueu-se e, fitando-os com dignidade e brandura, interrogou:

— Poderão informar-nos, senhores, da razão desta violência? ...

Frei Hildebrando aproximou-se, mascarado, deixando-se reconhecer, no entanto, pelo indisfarçável tom vocal:

— Descansa, querida menina... — exclamou, afetando bondade assaz suspeita —, e confia em nossa proteção... nada desagradável sucederá a ti se concordares em ser razoável e obediente... pois apenas desejamos a tua felicidade pessoal... A lei, porém, impõe-nos o ingrato dever de uma busca neste domicílio, porque houve denúncia de que aqui se pratica o judaísmo...

Aproximou-se mais e tocou-a no braço, num gesto ousado, protetor. A jovem desvencilhou-se e ele prosseguiu:

— Ficarás sob minha tutela, no Convento das boas dominicanas... Nada terás a recear do tribunal da nossa Santa instituição, afianço-te... porque o tribunal sou eu...

— Não, nunca! — revidou ela com ousadia. — Prefiro antes a prisão e a morte com os meus, a tortura, a fogueira, apesar de ser cristã!...

Correu para os primos, com eles se abraçando, enquanto riam, desdenhosos, os sinistros invasores. Eis, porém, que fora iniciada a inspeção no domicílio. Revolveram-se armários, cofres, arcas. Em verdade, estabelecia-se o saque à revelia da lei, pois, ambiciosos e avaros, convinha sempre aos magnatas da Inquisição invasões noturnas dessa natureza, a fim de burlarem a lei civil ou o governo, no tocante aos bens que por este seriam confiscados após a condenação, cerimônias estas levadas a cabo invariavelmente sob rigorosa formalidade, dita ou considerada legal. Mas, do que encontravam, então, de valor, Hildebrando e seus comparsas se apossavam como quaisquer roubadores inescrupulosos, afirmando tratar-se de bens heréticos e macabros, que a “piedade cristã” aconselhava serem convertidos em espórtulas às igrejas e aos desprotegidos da sorte, a fim de contribuírem para o alívio das almas dos seus infiéis possuidores, que se achavam caídos em pecado mortal. João-José insistia junto deles, insofrido e excitado:

— Procuremos no jardim as provas de heresia, Reverendíssimos! É no chafariz do tanque que se encontra o esconderijo! Existe lá o livro herético dos judeus, o qual estes Aboabs veneram e discutem aos domingos, como fariam nas sinagogas...

E realmente encontraram, na arca dissimulada no pedestal de mármore do chafariz, o livro tradicional da raça, em cujas venerandas páginas toda a família, desde os remotos ancestrais, sorvia energias morais, a consolação espiritual tão necessária nas horas deprimidas pela angústia, como nos dias dolorosos de expectação ante o fim trágico que finalmente chegava. O próprio Rubem, premido pelas odiosas imposições da sinistra comitiva, houve de desvendar o segredo da abertura, visto que não souberam decifrá-lo, os homens do “Santo Ofício”. 

E fê-lo banhado em lágrimas o infeliz rapaz, a si mesmo considerando traidor por haver deposto nas mãos dos mais terríveis inimigos da sua raça o penhor religioso venerado por todos os hebreus. Frei Cosme esbofeteou-o, vendo-o relutar em entregar o precioso texto. E o pobre adolescente, irritado, os nervos exaustos por uma expectativa prolongada e uma revolta exacerbada, investiu para ele, constatando que lhe tomavam o livro; e, tentando revidar a ofensa, cuspinhou-lhe no rosto ainda mascarado, pregando-lhe ainda os dentes com força na mão por que fora esbofeteado. Não concluiu, todavia, a expansão dos seus revides. 

Viu-se tolhido pelos brutais apaniguados do “Santo Ofício”, em um minuto amarrado com sólidas cordas, enquanto Ester, desfeita em lágrimas, corria intentando socorrê-lo, e Saulo investia, defendendo-o. Mas, igualmente no curto espaço de alguns instantes, viu-se a jovem amordaçada e amarrada, carregada pelos braços possantes de um sequaz de Hildebrando, metida dentro de uma carruagem fechada, onde em seguida tomou lugar este mesmo célebre e cruel inquisidor, rodando para local ignorado por ela. Dizia-lhe ele, no entanto, aos ouvidos aterrorizados, emocionado e arrogante:

— Acalma-te, querida menina! Nada desagradável te sucederá, já to disse! Sou o homem mais poderoso de Portugal! O próprio rei curva-se em minha presença! Amo-te! Amo-te e quero-te como um insensato, como um louco! E tu estás sob minha proteção! Serás grande, tão poderosa qual uma rainha, se o desejares! Apenas uma condição imponho: — sê minha! Consente em me amar também um pouco!...

E rodava a carruagem pelas ruas de Lisboa, imersa em trevas... Ficavam para trás, encobertos pelas sombras do pretérito, o lar que ela tanto amava, a família, o amor, a felicidade... e Saulo e Rubem, manietados quais ferozes malfeitores, espancados, arrastados como se mais não fossem do que trapos inúteis, que se incluiriam no monturo... (24) Mas, partindo, Ester pudera ainda observar que Saulo gargalhava e chorava, bramia e suplicava, afigurando-se que o infeliz adolescente perdera a razão, não resistindo à tensão traumática de uma rude e longa expectativa de desgraças finalmente verificadas. Alguns minutos depois, a jovem hebreia não mais pôde perceber o que se desenrolava ao redor de si e tão pouco o local para onde a conduziam, pois desmaiara ao lado de Hildebrando, vencida por violenta emoção.

(23) Deus.

(24) Não era comum a prisão de filhos menores de judeus. O fato aqui narrado parece tratar-se de vinganças pessoais. No entanto, a Inquisição deixava-os, geralmente, ao mais completo desamparo, segundo reza a História.

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