quarta-feira, 24 de junho de 2015

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo III

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes

Corria normalmente a vida do doutor Timóteo e sua família desde a última perseguição que fizera sucumbir sua muito amada mulher. Outras refregas se verificaram depois, visto que eram constantes, mas sem grandes prejuízos para os perseguidos e sem perturbações para a sua mansão. Passando agora por cristão, com toda a família, os vigias e espiões da inquisição observavam que, realmente, frequentavam as igrejas, assistiam a missas, praticavam os sacramentos, submetiam-se aos jejuns decretados pelas bulas, abatiam aves e animais para a sua mesa, não mais sob indicações dos princípios judaicos, mas como o faziam os povos ocidentais, ou antes, os cristãos, etc. 
Os filhos eram instruídos por frades dominicanos (14), sem que, a bem deles próprios, pudesse o pai se opor à opressão, indo os dominicanos, não raro, à mansão, a pretexto de levar lições extraordinárias, afim de velarem pela sua fidelidade à nova fé, mas em verdade no intuito de observarem se não se trairiam deixando perceber traços de que “judaizavam” ocultamente, isto é, se praticavam algo que revelasse o culto judaico. 
A revolta se alastrava, então, facilmente, pelo coração do antigo Rabino, ao qual obrigavam a todas as práticas contrárias às suas tradicionais convicções, e o amargor crescente tocava, muitas vezes, as raias do desespero, quando compreendia que nem mesmo direitos sobre os filhos podia ter, pois estes eram encaminhados sob princípios religiosos antagônicos com aqueles que desde milênios inspiravam a sua raça, a esta fornecendo aquela convicção inabalável e o heroísmo que, desde os dias de Abraão até o presente, dos hebreus fizeram a raça mais poderosa e moralmente forte na Terra.

Não obstante, Timóteo era homem bondoso, honesto, inofensivo, incapaz de uma vilania, até então nada revelando que desse a supor a odiosidade de que seria capaz futuramente; chefe de família amoroso e respeitável, de hábitos rígidos e decência inatacável. Sua casa, desde que as arbitrárias leis do “Santo Oficio” obrigaram a tornar-se cristão, abria-se a visitas de fiéis católicos cheios de curiosidade e inveja, os quais, afetando piedade e abnegação, iam a título de animá-los ao progresso na fé, mas, em verdade, para cobiçar os valores que a mansão encerrava, as preciosidades dos mármores do jardim, com seus repuxos e tanques pitorescos rodeados de belas flores, das baixelas e dos cristais, das obras de arte que aos seus salões tornavam cenáculo digno de admiração. Sabendo-o rico, exploravam-no sem pejo, não apenas os dominicanos representantes do “Santo Ofício”, a pretexto de cobranças de dízimos, licenças, espórtulas para a salvação da sua alma e da alma dos filhos, etc., mas também outros indivíduos, tais como fidalgos arruinados, autoridades civis e religiosas, etc.

Ora, assim sendo, impossível seria ao infeliz judeu e sua descendência simpatizarem com as opiniões de indivíduos tão desleais e moralmente inferiores, e ainda menos confiarem numa crença religiosa cujas diretrizes permitissem iniquidades como as que eram aplicadas a ele próprio e aos seus irmãos de raça, por aqueles que dela se propalavam luminares. Ignorava ele que a essência do Cristianismo rezaria exatamente o inverso de tudo quanto a Inquisição proclamava e executava, e que, como doutrina, era antes a mais sublime expressão do amor de Deus e da beneficência para com o próximo existentes sob a luz do Sol, e que aquele Cristo de Deus, que reis, papas e dominicanos lhes impunham pela violência e o terror, jamais aprovaria os planos e os meios por que seus pretensos representantes na Terra se orientavam, valendo-se do seu nome, ao qual profanavam, dele se utilizando para o decurso das próprias paixões.

Dentre os comensais da mansão judaica — corvos farejando possibilidades de altos proventos financeiros - destacava-se certo dominicano inquisidor, havia pouco chegado a Lisboa, pela frequência assídua e amabilidades talvez excessivas em torno de toda a família Aboab, ou da família neocristã Fontes Oliveira, como era chamada após o batismo. Tantas amabilidades tinham a particularidade de preocuparem o dono da casa, mau grado a lealdade de que pareciam emanar. A par desse, dois outros havia, amigos íntimos do primeiro, irmãos consanguíneos, gêmeos, e que igualmente se destacavam não tanto pela assiduidade, como pelos constantes protestos de amizade e testemunhos de consideração que aos Fontes Oliveira voluntariamente apresentavam, e que tudo indicava serem verdadeiros, leais. Chamavam-se, o primeiro, Frei Hildebrando de Azambuja, prenome que encobrirá, nestas páginas, o de certo teólogo português e inquisidor cruel no reinado de Dom João IIIº (15), e os outros Fausto e Cosme de Mirandela, pois descendiam de antigos nobres italianos.

Pelas tardes dos domingos, Frei Hildebrando de Azambuja merendava com seus amigos neocristãos, libando seus bons vinhos e em sua companhia se alegrando na intimidade da mesa de refeições. Associava-se gentilmente aos seus passatempos caseiros, tais como jogos, cânticos, ensaios poéticos, etc., então muito em uso nos recintos domésticos; aceitava-lhes as frutas e os refrescos, louvando sem constrangimentos o cavalheirismo dos anfitriões, no que era secundado por Fausto e Cosme, caso se encontrassem estes presentes. 

Ester, meiga e linda como a rosa em botão, simples e virginal como a rola casta das florestas solitárias do Hernion, não obstante raramente se associar às reuniões dos homens, como de uso entre as famílias hebraicas antigas, sempre que presente Hildebrando, era incluída nas mesmas, intentando desviar observações deste em torno dos hábitos raciais, cantando para os hóspedes de seu tio doces e sugestivas canções da Espanha, da Itália e mesmo de Portugal, acompanhando-se suavemente à cítara, porquanto vinha recebendo tão boa educação social e instrução tão vasta para a época, que Frei Hildebrando, de uma das vezes em que a ouvira, sorrindo e fitando-a com olhar ardoroso, exclamou:

— Muitas princesas da Espanha e de Portugal não obtêm tão adiantada instrução quanto a vossa, menina Mariana! Para que há de a mulher adornar-se tanto intelectualmente, se os seus compromissos com a sociedade são tão limitados, dispensando culturas? ...

E, voltando-se para o antigo Rabino, prosseguiu:

— Cuidado, amigo Silvério! A mulher, se se embrenha pelas letras, ultrapassa o homem na potencialidade criadora, podendo derribar o próprio mundo, com as astúcias e encantamentos de que se faz acompanhar... Não vos esqueçais de que constantemente o demônio a inspira...

Riram todos, encaminhando para nível humorístico a impertinência do dissimulado representante da Inquisição, ao que, em seguida, retirando dos lábios o comprido cachimbo que lhe era inseparável amigo, retorquiu o dono da casa:

Mariana é órfã e pobre, meu caro Dom Frei Hildebrando! Precisaremos habilitá-la para quaisquer emergências desagradáveis que possam advir, depois da minha morte! ... Instruindo-se, poderá tornar-se preceptora em casas abastadas, ocupando lugar honroso, ao abrigo da miséria...

Mas o dominicano não quis compreender as judiciosas observações do bom homem e alongou a impertinência:

— Como assim, meu caro amigo e senhor? ... Não sois, então, riquíssimo? ... E porventura vos negaríeis a conceder um dote, uma herança à vossa sobrinha órfã? ... Consta-me mesmo que a gentil Mariana desposará seu primo Henrique, vosso primogênito... Para que, pois, obrigá-la ao sacrifício de tão profundos estudos quando só a religião bastaria para orientá-la nas tarefas a cumprir dentro do lar, e quando sua idade requer plena satisfação dos sonhos que certamente lhe fervilham na mente e no coração? ...

Timóteo — ou Silvério — era caráter ponderado e vigilante. Nascido na opressão, vivendo longe da sua pátria tradicional, acossado por múltiplos perigos advindos da perseguição religiosa, e, por tudo isso, habituado a conter os próprios impulsos de revolta e ímpetos de violência, virtude racial desenvolvida no martirológio milenar de continuadas opressões e cativeiros, e igualmente possuindo boa educação social, respondeu ao insofrido interlocutor, entre um meio sorriso de brandura, não isento de secretos receios:

— Tendes razão, meu caro Dom Frei Hjldebrando, tendes, como sempre, razão! Conquanto eu já não seja riquíssimo, como vossa bondade de mim supõe, pretendo, efetivamente, prendar minha sobrinha com um dote, case-se ela ou não com o meu filho Henrique... Não obstante, nos dias em que vivemos, quando tantas surpresas nos envolvem, tudo será possível acontecer... Temo que, de uma para outra hora, algo de funesto a mim próprio suceda, deixando-a desamparada... Os bens de fortuna são efêmeros, temporários: — poderão faltar-nos a qualquer momento, se os possuímos, e por qualquer circunstância... Somente os bens morais e intelectuais são de nossa definitiva propriedade... lá reza a sabedoria de todos os povos... por isso mesmo, educo Mariana com a fortuna do saber, tesouro imperecível que jamais lhe será arrebatado... De outro modo, peço vênia para observar que a instrução proporcionada à minha sobrinha não ultrapassa a que se ministram às damas destinadas a se tornarem preceptoras, ou aias professoras, das casas abastadas...

— Magoa-me profundamente ouvir-vos, amigo Silvério! Que desagradáveis surpresas poderiam advir para vós e vossos filhos, se há dois anos sou vosso amigo e protetor de todos os dias, disposto a evitar quaisquer contratempos que possam ainda assaltar-vos? ... Não confiais, então, em nós outros, quando tão desvanecedoras provas de estima e solidariedade vos temos concedido?... Não possuís, porventura, cartas de recomendações protetoras, fornecidas por Sua Santidade, para garantias vossa e de vossa família, que tão nobremente aceitou a única fé verdadeira? ... Não estamos, ao demais, ao vosso dispor, resguardando-vos, em quaisquer emergências, dos zelos tão justos da nossa Santa Inquisição, que só o que deseja é a salvação das almas infiéis? ... E porque temer novas perseguições, se agora sois dos nossos adeptos fiéis da única Igreja verdadeira do Universo? ...

Timóteo deixou escapar do peito angustiado um profundo suspiro, que não passou despercebido à argúcia do ilustre dominicano, e, enquanto se erguia a fim de chamar um escravo (16), respondeu, algo pesaroso, entristecido e enigmático:

— Tendes sempre razão, Dom Frei Hildebrando, tendes sempre razão! Sim, eu confio em vós outros porque me honro de ser vosso amigo leal e entendo que, assim sendo, sereis igualmente meus leais amigos... Todavia, insisto: — nos dias correntes tudo será possível acontecer a despeito da vossa bondade de amigos e à revelia dela...

Chegaram vinhos, frutas açucaradas, refrescos e cordiais. E, enquanto os visitantes se deliciavam ante a prodigalidade e fineza dos donos da casa, a bela judia pegou novamente da cítara e continuou a doce tarefa de embevecer-lhes a audição com outras canções do seu repertório, nostálgicas e lindas...

* * *

Frei Hildebrando de Azambuja foi, em princípios deste século, aquele infeliz Leonel, reencarnado, aquele jogador, incrédulo e suicida, cujo drama íntimo obrigava a nós outros, Espíritos assistentes, médiuns e espíritas cooperadores, ao trabalho de que damos notícias ao leitor nestas singelas páginas; e Fausto e Cosme de Mirandela dois dos seus filhos, que foram quase suicidas, salvos a tempo da odiosa tentação.

* * *

No entanto, o que era bem certo é que — nem Timóteo confiava em Hildebrando e seus sequazes, nem Hildebrando e seus sequazes estimavam Timóteo e família e ainda menos acreditavam na sua conversão à fé católica. Ambos, intimamente, nutriam um pelo outro desconfiança inquietadora, sentimento hostil e antipatia pessoal perigosa, que a um observador levaria a compreender que não tardaria muito que tal mal-estar oculto explodisse em desajustes irremediáveis, arrastando uma daquelas perseguições individuais ilógicas, absurdas, incompreensíveis, com que os séculos inquisitoriais afrontaram a posteridade. O de que nenhum dos dois, porém, duvidava era que, desse antagonismo, dissimulado, de um lado, pela boa educação social e o terror, e, do outro, pelos interesses inconfessáveis, quem levaria a melhor seriam Frei Hildebrando e seus apaniguados, visto que nenhum judeu confesso ou convertido à Igreja de Roma estaria em condições de medir forças com inquisidores e vencê-los, ainda que a razão e a justiça estivessem de seu lado...


(14) Religiosos da Ordem de São Domingos, criada pelo pregador espanhol Domingos de Gusmão, em 1215. Muitos desses religiosos foram inquisidores, sobressaindo-se dentre tantos, pelas crueldades praticadas, o célebre Tomás de Torquemada, inquisidor-geral na Espanha, que, segundo consta, “fez condenar à fogueira mais de oito mil pessoas”, e Jerônimo de Azambuja, em Portugal, não menos célebre pelas mesmas crueldades. Domingos de Gusmão. Falecido em 1221 foi canonizado pela Igreja em 1234.

(15) Jerônimo de Azambuja. Célebre e cruel inquisidor-mor e teólogo, de Portugal, também conhecido pelo pseudónimo de Oleastro, ao tempo de Dom João III. Nomeado inquisidor em Évora, em 1552. Só em 1555 se transferiu para Lisboa.

(16) Os judeus, mesmo convertidos, não conseguiam criadagem entre os cristãos. Apelavam então para a escravatura sempre existente entre outras raças não cristãs ou judaicas.

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