domingo, 28 de junho de 2015

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo IX

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes      

      

Nesses afastados tempos, desoladores e atormentados, nenhuma família judaica conseguiria serviçais domésticos, ou de qualquer outra espécie, pois nenhum cidadão, por miserável que fosse, se prestaria a criado em residências de tais famílias, ainda que estas fossem já batizadas ou convertidas, e por mais altamente remunerado que pudesse ser.

Teriam, portanto, de se utilizar da escravatura os pobres judeus, escravatura que tanto seria africana como também moura, cigana, pária, etc., conquanto o número de escravos fosse geralmente insignificante. Ora, na bela mansão judaica existiam três escravos para toda a família, dado que seria difícil adquiri-los pela época, e cujas crenças religiosas não interessariam aos zelos governamentais, por se tratar de criaturas havidas como realmente inferiores, à parte da sociedade. Tais zelos se empenhavam particularmente na perseguição a judeus. 

Todavia, na residência em apreço eram eles bem tratados, remunerados e não escravizados, viviam alegremente, desfrutando horas de recreio e parecendo estimarem seus senhores. Efetivando-se, porém, o incidente entre o jovem Joel e Frei Hildebrando, os três escravos, espavoridos com o que a eles próprios poderia acontecer, fugiram de seu senhor sem mais delongas, desaparecendo sem que o amo se animasse a tentar meios policiais para encontrá-los, fazendo-os retornar ao domicílio. A situação interna, por isso mesmo, sofrera alterações sensíveis, forçando a delicada Ester a desempenhos rudes e cansativos, não obstante o auxílio afável dos dedicados primos Saulo e Rubem. 

Alguns dias após o interrogatório sofrido pelos Fontes Oliveira, e ainda se encontrando a mansão destituída de serviçais, apresentaram-se a Timóteo um homem e uma mulher. oferecendo-se como criados ou mesmo escravos, pois não faziam questão de subsídios e apenas desejariam alimento e pouso em troca dos serviços prestados. Vinham de longe — afirmavam —, das bandas da Espanha, banidos do próprio lar pela perseguição inquisitorial de Carlos 5º, e necessitavam ganhar honesta e discretamente o próprio sustento para se ocultarem o quanto possível, a fim de se recuperarem para a retirada que desejavam empreender por via marítima, em demanda de terras menos assoladas pela crueldade. Eram judeus espanhóis — disseram — e falavam o dialeto comum à raça, o que, para o crédulo Rabino, seria o mais seguro documento de apresentação. Confiante, o doutor Timóteo admitiu-os sem tardança, instalando-os convenientemente, jubiloso por ficar Ester a coberto de tantas rudes fadigas. 

O homem, dizendo-se descendente de árabes, dir-se-ia antes um cigano. Sua curiosa indumentária, absolutamente diversa das usadas por judeus, não despertou a atenção de Timóteo, habituado a ver disfarces de toda espécie entre seus companheiros de crença. Usava, como os ciganos, calções curtos, de tecido listrado, meias compridas ajustadas aos calções à altura dos joelhos; grandes sapatos de solas de madeira, camisa branca, de mangas largas atadas aos pulsos e colete em veludo escarlate bordado a ouro; faixa azul à cinta, lenço listrado à cabeça, uma argola dourada pendente da orelha esquerda, recordando, com efeito, ciganos mouros ou o estado de escravatura entre alguns povos orientais. Chamava-se João-José, simplesmente, era vaidoso e julgava-se belo e irresistível, com seus grandes olhos de oriental e os bigodes luzidios, não obstante o defeito físico que apresentava, pois coxeava sensivelmente de uma perna.

O leitor entreviu João-José nos dias do século XX reencarnado na pessoa de Alcina, filha de Leonel, suicida como seu pai, numa existência em que se desejou ocultar, sob formas femininas, de seus implacáveis obsessores, ou seja, os antigos amos do século XVI.

Não obstante, marido e mulher nem eram verdadeiramente judeus nem verdadeiramente árabes, porque ciganos, que viviam da rapinagem e da traição, servindo ao mal a soldo de quem melhor os remunerasse. Não passavam, por isso mesmo, de fiéis espiões da Inquisição, com a detestável incumbência de observar os judeus convertidos e denunciá-los ao “Santo Ofício”, desde que colhessem um flagrante qualquer incompatível com as recomendações usadas pelas arbitrárias leis inquisitoriais. Hildebrando de Azambuja, odiento e cruel, encaminhara-os para a mansão Aboab, tudo dispondo da melhor maneira para que não fossem suspeitados do verdadeiro fim por que buscavam empregar-se. 

Não o foram, com efeito. Timóteo e os filhos em ambos confiaram, abrindo-lhes o lar, penalizados, supondo-os igualmente perseguidos. Todavia, jamais os admitiam às confidências ou à intimidade, mantendo-os a distância conveniente e digna. João-José, assim sendo, espionava-os quanto possível, não perdendo jamais oportunidades de lhes ouvir as palestras íntimas e medir atitudes, a ver se incorriam em alguma falta prevista pelo tribunal da Inquisição. Nada interessante descobrindo que Frei Hildebrando já o não soubesse, perseverava no odioso papel, impaciente pelo dadivoso momento em que pudesse apresentar ao ilustre dominicano a nova de qualquer ação que revelasse fidelidade à crença de Israel, praticada pelos patrões. Era remunerado para o serviço... e a descoberta de uma nova infração resultaria para ele em vantajoso prêmio...

Entrementes, chegara ao infeliz hebreu a nova acerba de que seu primogênito, reconhecido e detido pela milícia inquisitorial já em território espanhol, rumo à Itália, fora reconduzido a Lisboa e encarcerado por ordem do Inquisidor-mor, o mesmo sucedendo a seu pajem, o velho Gabriel. Desenvolveu-se, então, um processo em regra contra o infeliz jovem, visto que, efetivamente, ele errara procurando fugir e burlando autoridades com passaportes falsos, atitudes contraproducentes que redundaram em irremediáveis agravantes para a sua situação, dificultando a defesa que o pai impetrava a seu favor. 

Em vão recorrera este novamente aos préstimos de Maria de Faro, acossado pela desesperação da causa, pois a desleal Senhora, receando o desagrado do ilustre Azambuja, abandonara os amigos à própria sorte, negando-se a qualquer tentativa a seu favor. Os advogados de Aboab, hebreus recém-convertidos, como ele, visto que outros que não estes não aceitariam causas de defesas de outros hebreus, convertidos ou não, faziam o que lhes estava ao alcance. Exigiam, no entanto, honorários e recompensas escorchantes, dado que existiam sempre grandes perigos em se bater alguém por um hebreu acusado pelo tribunal da Inquisição, ainda mesmo quando fosse este já batizado e considerado cristão. Frei Hildebrando e seus comparsas Fausto e Cosme exerciam pressões desesperadoras, como sempre, uma vez que do feitio de tais caracteres era a crueldade contra as indefesas vítimas que lhes caíssem nas garras. 

O primeiro propusera mesmo, a Silvério, a liberdade de Henrique em troca da esplêndida mansão e da pessoa de Ester, que, afirmava ele, seria internada num Monastério a fim de trabalhar pela salvação da própria alma, como cristã revoltada e relapsa que era considerada. Mas, sem sequer participar à sobrinha a indignidade da proposta, o velho Rabino rejeitou a oferta, certo, porém, de que cara lhe custaria a rejeição, acedendo, no entanto, no quesito relativo ao imóvel, pela libertação do filho. Fausto e Cosme, por sua vez, propuseram a entrega da prataria restante no solar, dos cristais e objetos de arte que ainda restavam, quadros de grande valor artístico, pintados por Joel inclusive, em troca da proteção de ambos para uma garantia de fuga de toda a família em momento azado. 

Esperançado, ante a tormenta em que se sentia soçobrar, o indefeso Rabino aceitou a proposta... e a velha e aprazível mansão, cobiçada desde muito por tantas altas figuras, foi destituída dos seus preciosos adornos, enquanto aguardavam o momento da prometida fuga para a entrega do edifício ao desumano Azambuja...

A situação geral era, assim, aflitiva, desesperadora, quando, subitamente, os acontecimentos se precipitaram em torno da desgraçada família, desde treze anos passados mantida em incansável observação por parte de seus intransigentes inimigos. 

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