quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Dramas da Obsessão - A Severidade da Lei - Capítulo X

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes

Certo dia chegou à residência do casal, na ausência de Alípio e de Sarita, uma visita para a enferma. A criada fê-la inadvertidamente entrar, encaminhando-a para o aposento onde, de preferência, Angelita permanecia, isto é, a antiga câmara conjugal, agora transformada em escola e salão de visitas. Absorvida pela leitura das consoladoras páginas da “Imitação de Cristo”, Angelita mantinha a alma voltada para as doçuras da Espiritualidade, enquanto o coração se reanimava ante murmúrios inefáveis daquela voz celeste que nos refolhos da sua personalidade ecoava com as mais amorosas e enternecedoras advertências que ela poderia receber de alguém, e lia, comovida:

— “Cristo também foi, neste mundo, desprezado dos homens, e em suma necessidade, entre os opróbrios, o desampararam seus conhecidos e amigos. 
Cristo quis padecer e ser desprezado, e tu ousas queixar-te de alguém? 
Cristo teve adversários e detratores, e tu queres ter a todos por amigos e benfeitores? Se não queres sofrer alguma contrariedade, como serás amigo do Cristo? Sofre com Cristo e por Cristo, se com Cristo queres reinar...

Virou lentamente a página, o coração como que destilando essências espiritualizadas, e seus olhos tristes depararam o que se segue:

— “Se souberes calar e sofrer, verás, sem dúvida, o socorro do Senhor. Ele sabe o tempo e o momento de te livrar; portanto, entrega-te todo a ele.”

— “Ao humilde, Deus protege e salva; ao humilde, ama e consola; ao humilde ele se inclina, dá-lhe abundantes graças e, depois do abatimento, o levanta a grande honra. Ao humilde revela seus segredos e com doçura a si o atrai e convida.

O humilde, ao sofrer afrontas, conserva sua paz, porque confia em Deus e não no mundo. Não julgues ter feito progresso algum, enquanto te não reconheças inferior a todos.”

A visita entrou acompanhada pela dedicada serva. Angelita fechou o livro e colocou-o sob as almofadas. Tratava-se de uma dama corpulenta, morena, de grandes olhos nostálgicos, recordando olhos da raça africana. A enferma não a vira jamais! Não se tratava de relações de amizade da família. Ao primeiro exame, porém, compreendeu que aquela mulher sofria. Intimidada, sentindo ainda repercutir no coração as vozes deificas das páginas que lera, fez um gesto, convidando-a a sentar-se.

- Ao que devo a honra da sua visita, minha Senhora?... — perguntou, atenciosa.

A visitante demonstrou indecisão, para em seguida responder, traindo emoção: 

— É tão ingrato o móvel da visita que lhe faço, minha Senhora, que antes de mais nada rogo ao seu coração muita serenidade para me ouvir, e, acima de tudo, o seu perdão para a ousadia em procurá-la e para o desgosto que, estou certa, lhe causarei...

Angelita empalideceu imperceptivelmente, enquanto o coração se lhe precipitava sob o acúleo de penosa angústia, e fitou a visitante, como animando-a a prosseguir.

—Trata-se de seu marido, minha Senhora...
—Estou ouvindo, pode falar...
—... Tenho uma filha de dezesseis anos de idade, a única que possuo, o anjo do meu lar, que já não conta com o amparo de um chefe, pois sou viúva. 

Silêncio desconcertante pesou entre ambas, Os olhos da visitante encheram-se de lágrimas. A palidez da inválida acentuou-se:
—Prossiga, minha Senhora, estou ouvindo... —repetiu, resoluta.

E a dama de olhos melancólicos, qual meteoro que acabasse de destroçar o coração da infeliz esposa de Alípio, explicou, de chofre:

—Minha filha foi seduzida por seu marido...
As duas se entreolharam, depois do que Angelita exclamou, serena, amparada por uma tranquilidade como se dos Céus descessem refrigérios a fim de alentá-la:
—E que espera a Senhora possa eu fazer por sua filha? Há nove anos estou inválida neste leito de dores! Somente a minha morte remediaria a situação de sua filha, pois, infelizmente para ela e quiçá também para mim, o Código Civil Brasileiro não só não adota o divórcio como, ainda que o adotasse, não o concederia a meu marido só pelo fato de ser eu inválida... 
Mas Deus, em sua soberana justiça, ainda não desejou libertar-me deste cativeiro.
—Minha filha é uma criança e será mãe dentro de algum tempo... Pleiteio para ela o direito de ser dotada por seu marido, pois sei que ele possui bens. 
—Porque não se dirige antes a ele, minha Senhora?
—Nega-se a atender-me.
—Dirija-se então ao Juizado de Menores.
—Haveria escândalo... Ele será, certamente, processado pela Justiça, a situação de minha filha se complicaria, ele se tornaria inimigo.
—Que deseja, então, de mim?
—Que o aconselhe, instando para que me atenda, a bem de todos nós. Ousei dirigir-me à Senhora porque ele afirma que é esposa compreensiva.. não o molestando por haver tornado à vida de solteiro.

Angelita meditou por um instante e depois adveio, com desânimo:
—Talvez a Senhora tenha razão em me procurar para tal fim, porquanto, nestes nove anos de tão cruéis sofrimentos, somente restava esse pormenor para me completar o martírio.
Certamente, reanimada pela fragilidade da criatura a quem abordava, a visitante continuou, displicente:

—Quero que ele monte uma casa e se comprometa a amparar minha filha como se realmente fosse casado com ela. A Senhora há-de convir que eu, como mãe...

—Sim, tem toda a razão... Verei se posso fazer o que me pede. Agora, suplico-lhe, por piedade, retire-se, deixe-me em paz...

O resultado de tão ousada quão impiedosa visita não se fez esperar. Informada na mesma tarde pela amiga, que se não encorajara a dirigir-se ao marido para tão singular assunto, Sarita prestou-se a abordá-lo no intuito de evitar à pobre inválida novos choques da mesma espécie, visto que não seria justo que a infeliz esposa fosse imiscuída no melindroso caso. Mas, de ordinário, a pessoa colhida em falta grave, em vez de se penitenciar, como seria honroso, revolta-se contra aqueles que lhe descobrem os erros, portando-se violentamente. Alípio não só repeliu Sarita como, em altas vozes, com ela discutiu, declarando que faria de sua vida o que bem entendesse, torcendo o sentido da advertência piedosa da fiel amiga para repetir que se transferiria definitivamente para a casa da jovem seduzida, a esperar o fruto querido, resultante da união, terminando por lamentar que a esposa vivesse ainda, impedindo-o legalizar a situação com aquela a quem ardentemente queria. 

Entrou no aposento da enferma e confirmou, colérico, o que se passava, acrescentando não admitir censuras; insultou-a cruamente, rogando-lhe que morresse de vez, desocupando um título e um lugar que antes caberia à outra, visto que ela, Angelita, fora fragilmente ligada a ele apenas durante onze meses; que os laços do matrimônio, entre ambos, haviam sido definitivamente rompidos e que ela se desse por muito feliz de ali continuar, naquela casa, onde era suportada apenas pelo critério da caridade.

A jovem esposa não replicara sequer com um monossílabo. Não derramou uma só lágrima! A dor de assim ouvir o ser amado fora demasiada, cristalizando em seu coração a possibilidade de reação. A amiga procurou reconfortá-la tanto quanto possível, não obstante compreender que a desditosa acabara de receber o golpe mortal, pois apenas Sarita permanecia à sua cabeceira, local onde sua própria mãe, feliz entre os demais filhos, só raramente aparecia.

Entrementes, o mau esposo cumprira o prometido. Retirou-se definitivamente do lar, curvando-se, finalmente, à imposição que lhe fizera a genitora da jovem seduzida. Esqueceu, assim, completamente, a esposa inválida, cujas necessidades eram agora supridas por Sarita e um ou outro parente mais prestativo, uma vez que o esposo só de longe em longe se permitia o incômodo de informar-se do que careceria aquela que, a despeito de tudo, usava o seu nome.

Tão lamentável estado de coisas durou ainda dois longos anos, durante os quais, agravando-se o estado da enferma com a irrupção de um câncer interno —consequência do acidente verificado por ocasião da operação e como resultado imediato do choque traumático pela suprema descaridade sofrida do esposo —,seus padecimentos ultrapassaram todas as perspectivas. Até que, por uma tarde tépida e serena de domingo, a sós com a fiel amiga e suas filhas e o velho médico assistente, Angelita desprendeu-se, finalmente, da prisão corpórea, que a detivera na expiação de um mau passado, alçando às moradas invisíveis sob a tutela das amoráveis crianças de Antônio de Pádua, depois de onze anos de um calvário de dores morais cruentas e de lágrimas silenciosas e humildes.

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