quinta-feira, 2 de julho de 2015

Dramas da Obsessão - Segunda Parte - Capítulo XIII

Yvonne do Amaral Pereira
Ditado pelo Espirito de Adolfo Bezerra de Menezes


Não alongaremos a nossa história, descrevendo ao paciente leitor as démarches do processo de condenação da infeliz família Aboab, o qual, como todos os demais movidos pela Inquisição, foi vergonhoso pela má fé dos seus executores, injusto e vil, como atestado que era de uma época sombria, em que o excessivo ardor religioso, mancomunado com leis civis despóticas e tão apaixonadas quanto ineptas e cruéis, distribuía, em nome da Verdade, o vírus de irreparáveis calamidades sociais, esquecido de que a missão da Fé, como a da legalidade, seria antes consolar e proteger almas aflitas e inexperientes, encaminhando para o Bem e, portanto, para Deus, quantas criaturas desnorteadas pela ignorância se achegassem à sua sombra. Acrescentaremos apenas, evitando que o nosso noticiário se torne incompleto, que o inquisidor-mor, como sempre, colocou a serviço do seu mau caráter todos os requisitos da perversidade de que era capaz o seu coração diabólico, torturando seus antigos anfitriões com a ferocidade demonstrada nos demais processos a que presidia e orientava. 
Negara toda espécie de consolo e alívio aos infelizes Aboabs. Com os próprios bens confiscados, destituídos de quaisquer recursos na solidão dos calabouços, impossibilitados de se entenderem com amigos e correligionários, ainda porque nenhum destes se atreveria já a se apresentar como tal, os desgraçados não esperavam senão a morte na fogueira, como suprema esperança para o término de tão rigorosas desventuras!

Mantidos em prisões isoladas, não lograram o alívio de se reconfortarem uns aos outros, senão o ataque de ratos vorazes e vermes imundos, que agravavam o seu inconcebível martirológio. Dali saíam, periodicamente, apenas para a sala de torturas. Tratava-se de dependência subterrânea, armada em pedra e alvenaria, com longas arcadas impressionantes e teto em abóbada, local sinistro, carregado de vibrações dolorosas, odiosas, rodeado de sombras, onde o cheiro repulsivo do sangue humano e da carne queimada pareciam estigmas degradantes, e onde se passavam, em segredo para os homens, mas visíveis a Deus, os mais abomináveis crimes cometidos na face da Terra! Então, eram submetidos a interrogatórios contundentes como a outros tantos suplícios, durante os quais os algozes encontravam ocasiões sempre fáceis para intercalarem sofismas e interpolações soezes, raciocínios falsos e comprometedores para as vítimas. Somente nessas horas cruciantes podiam os infelizes se avistar, à exceção de Ester, que jamais aparecera, e se contemplavam famintos e imundos, esquálidos e deprimidos, atrelados a colunas, a fim de não tentarem sentar; e ali, tendo à frente os demais membros da família, sofriam vexames e insultos, humilhações e tratos de que a Inquisição fora sempre tão fértil em inventar para suplício de milhares de vítimas que fez durante séculos! (25) Assim foi que — conforme entrevimos no início destas narrativas.

— Aboab e os filhos tiveram as unhas e os dentes violentamente arrancados, as carnes dos braços e coxas, e as solas dos pés queimadas com tenazes em brasa; os punhos retorcidos e deslocados, suplícios estes lentos, que não matavam com rapidez, mas torturavam até ao paroxismo do horror, afirmando os mandatários da execrável instituição que semelhantes tratos seriam antes benemerentes porque predisporiam as almas hereges ao próprio salvamento das sombras infernais, depois da morte. 

Tão patético martirológio estendeu-se por seis longos meses, durante os quais nem sequer um aceno de esperança viera suavizar as trevas em que se convertera a existência do desgraçado Timóteo e seus três filhos e ainda o velho Gabriel, que fora o primeiro a sucumbir. Suplicava aquele, invariavelmente, que lhe despedaçassem o corpo, torturando-o ainda com maiores requintes de crueldade, mas que poupassem seus filhos, que eram cristãos e inocentes de quaisquer faltas contra a Inquisição. 

Que lhe dessem, por misericórdia, notícias de Ester, por cuja sorte se exasperava de ansiedade e terror! Mas, respondiam-lhe os verdugos com bofetadas e torturavam os três jovens ainda mais caprichosamente, em sua presença, causando ao desgraçado pai, a quem mantinham atrelado a uma coluna de pedra, os paroxismos da raiva e da desesperação. Hercúleo e enérgico, Joel resistia aos tratos terríveis, não obstante a extenuação que diariamente se acentuava, esperançoso até final de algo indefinível que o libertasse, permitindo-lhe investigar o paradeiro da noiva a fim de socorrê-la e poder vingar-se... Saulo e Rubem, no entanto, enlouqueceram ante a crueza dos sofrimentos, dada a extrema juventude, que favoreceria choques nervosos irremediáveis, havendo o último sucumbido atrelado à coluna, ou pelourinho, diante do pai e dos irmãos, enquanto o outro expirara dias depois, ambos se livrando, assim, da morte pelo fogo, mas não escapando da incineração do cadáver em vistosos “autos de fé” em praça pública, como era de praxe nos códigos da execrada instituição.

Certa vez, ao chegarem Timóteo e Joel à sala de torturas, já inteiramente desfigurados pelo longo martírio, depararam Ester também atada a um pelourinho, inteiramente desnuda e rodeada por algozes mascarados. A infeliz judia, em cuja fisionomia se estampava o horror perfeito, suplicava por entre lágrimas e gritos lancinantes que lhe tirassem quanto antes a vida, mas que cessassem de submetê-la às ignomínias com que, na sua qualidade de mulher, se via supliciada! Não apresentava pelo corpo sinais de tratos inquisitoriais, havendo o doutor Timóteo e o filho compreendido, num momento, a vileza dos sequazes da Inquisição, que, geralmente, profanavam cruelmente as virgens hebreias antes de atirá-las à fogueira!

Experimentando, naquele instante, novo gênero de suplício, superior em intensidade a tudo quanto já sofrera até então, Joel, enlouquecido, investiu, num instintivo impulso, no intuito de socorrê-la. Mas vários braços o tolheram, espancando-o, torturando-o, atrelando-o à coluna costumeira. Então, por entre gritos de desespero, blasfêmias e insultos atirados até mesmo contra o próprio Criador, o desgraçado jovem cientificou-se de que Ester — o seu imaculado lírio, em cujas faces jamais roçara os lábios por se não julgar bastante digno de tal mercê, pela só razão de ser homem — fora aviltada na sua candidez virginal pela ignomínia de Hildebrando de Azambuja, que a raptara e conservara prisioneira em local indevassável; que faustos e honrarias oferecera-lhe ele para que se adaptasse de boamente à ingrata situação, mas, como a jovem preferira conservar-se revoltada contra o atentado vil, testemunhando-lhe todo o desprezo que lhe votava, vingara-se ele, cruel e satânico até o fim, submetendo-a violentamente a todas as suas torpezas durante algum tempo, para depois abandoná-la aos caprichos dos seus demoníacos colaboradores, os quais, eternos ébrios, a haviam exposto ao mais aviltante dos martírios que poderá atingir uma mulher! E agora ali estava ela, indefesa, à espera de martírios novos, em presença do tio e do noivo... para, alguns dias depois, sem mais avistá-los, morrer na fogueira... suave arremate de tão profundas desgraças...

Calara-se o Patriarca, conservando-se pensativo durante alguns instantes. Eu e meu assistente Roberto, comovidos, sentíamos igualmente confrangidos os nossos corações. Aguardávamos em silêncio, desencorajados de algo mais interrogar, certos de que o ensinamento seria completado. Dentro em pouco, efetivamente, a respeitável entidade, após um aceno que interpretaríamos como a tradução de um profundo pesar, continuou bondosamente, oferecendo-nos o ponto final das suas informações:

— “Resta-me acrescentar ainda, ao noticiário que me destes a honra de requerer, que o infeliz Timóteo, esse obsessor intransigente, que há quatro séculos persevera na vingança, esse inimigo implacável de Leonel e família, o qual tendes acolá, hospedado na vossa agremiação terrena de estudos e trabalhos beneficentes, para um devido, supremo entendimento, foi levado à fogueira com seu filho Joel, poucos dias após a cena última, ignorando o paradeiro da pobre Ester. Encontravam-se já semimortos pelos maus tratos sofridos e meio dementes de dor e desesperos; e morreram por entre revoltas e blasfêmias, repudiando a própria crença em Deus ante o destino que tão adverso lhes fora possuídos de um ódio demoníaco por seus perseguidores e algozes, ódio e revolta que deveriam cavar para ambos, e os demais filhos, um abismo de trevas que se alonga já por quatro séculos! Ester, ao contrário, humilde e resignada, tendo aceitado, desde muito, nos recessos da alma, a verdadeira crença no Messias de Deus, anunciado pelos profetas da sua raia, reconhecendo nesse perseguido de Jerusalém um mártir sublime, digno de ser amado e imitado, extinguiu-se na fogueira beijando e banhando de lágrimas a cruz da redenção... e quantos se encontravam pelas imediações do patíbulo crepitante afirmaram tê-la ouvido cantar, com voz serena e muito meiga, os olhos fixados no espaço, como prelibando a satisfação de uma realidade compensadora e empolgante, aqueles Salmos queridos que faziam o encantamento espiritual da família Aboab durante os serões saudosos e tão doces, sob o frescor das oliveiras do antigo solar judaico:

“O Senhor é o meu pastor) E nada me faltará...
A suaves campos me guiou
E me conduziu a fontes
De água fresca e pura...


(25) Segundo revelações da História, um desses pavorosos suplícios consistia em colocar-se a vítima atada a um catre, ou mesa, e retalhar-lhe as solas dos pés, untá-las com azeite e chegar-lhes o fogo lento. Acossada em tais condições pelos exasperados sofrimentos, a vítima confessava o que seus algozes desejassem e tal confissão seria o caminho para a condenação à morte na fogueira. Muitos outros suplícios assim atrozes eram praticados. Em Portugal e na Espanha tais vítimas eram sempre de raça judaica.






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